De Ana T. e Eu

Mesmo sem vê-la, imaginava-a faceira, sorrindo de canto de boca, não sei se de escárnio, incredulidade ou contentamento. Escrevíamos freneticamente, meio em transe. Não sabia se falava com ela, ou com sua Ana T. Em vão, muitos tentaram descobrir de que T. se tratava. Transa, Tesão? Algo sujo, talvez Trepa? Ana Tola? Para mim era claro, Ana Terna. Depois de me deixar dar uma breve espiada em seu âmago, ela disse:

“Mas enfim, viva os desabafos com os desconhecidos. Eu falo demais,desculpe.” “Desculpas não aceitas. Ninguém deve pedir desculpas por isso.” “Obrigada. É. Não hoje. Nem usar o modo imperativo. Não hoje. Mas me diga, eu escrevendo pareço com a que você conheceu? A que você viu e falou?” “Te devolvo a pergunta, mesmo sabendo a covardia que é fazer isso.” “Não. Não parece. Não é bem isso.” ”Como assim?” “Se eu conhecesse você pela internet, talvez achasse que você é uma pessoa mais séria. E você pareceu ser tão… ora… doce? Acho que por aqui não falaria que você é uma pessoa que gosta de abraçar, ou mais ligada aos toques..mas pelo pouco que eu lembro, acho que você é assim. Ora, mas tudo o que eu falei está ligado muito com suposições, ser, parecer… ai fica tão difícil… cheio de achares.” “Mas no fundo tudo é achismo, por mais clichê que seja. Não sei se me descreveria como uma pessoa de tato e toque, pelo menos o meu eu sóbrio.” “Eu não descreveria você assim, acho que você por aqui parece gostar menos disso do que na “vida real”. Mas pra variar eu estou falando muito, não sei, eu lembro pouco. Absurdo isso “vida real”, “vida virtual”é vida.” “Para nós.” “Acho triste.” “Quero nunca chegar a esse estágio.” “Nem eu.” “Mas eu gosto de toques. Não tanto como de sons.” “Faz sentido” “Acho que por ter sentido você, não me dei por satisfeito somente com sons, e necessitei de toques.” “E eu fugi deles.” “Eu notei.”

“Esse diálogo. Está tão bonito, se você permitir, um dia vai virar um conto. Sou bastante viciada em escritos. Ai meu deus, que metalinguagem absurda daqui a pouco já tem um conto. Eu gosto de tato, eu sou totalmente ligada nisso. Pele. Textura.” “Toque.” “Gosto.” “Talvez eu tenha me enganado e Ana T. seja Ana Toque e não Ana Terna.” “Ou textura.” “Será?” “Vai saber, né.” “Textura é inação. Algo que é. Sem vontade ou algo que o valha por trás. Toque não. Toque é atitude. É desejo, é Vontade.” “Mas textura, textura não se fala. A pele não gosta que saiam por ai falando assim, jogando ao ar a palavra: Textura. A boca tem que sentir, por mais clichê que seja. Lábio descobrindo a textura da pele.” “Toda descrição é vã. Acho que por isso não se deve falar de textura.” “Nem de toques, desejos, vontade?” “É quase herege você excitar imagens e sons, atiçar-se olhos, ouvidos com textura, quando o único que realmente pode ser satisfeito por isso não está disponível: o toque.” “O toque como ação. Mas nós nos deliciamos com isso, os poetas, escritores… que seja, qualquer que escreva, qualquer cena escrita é capaz de arrepiar.” “Todo escritor antes de mais nada é um sado masoquista. De se excitar e se martirizar pelo que cria e escreve. Principalmente quando não pode alcançar.” “Ou então porque já virou lembrança.” “Ainda mais quando seja algo tão forte como um toque.” “Como pode não? As palavras. Palavras, não são só palavras. Sentimos o gosto a respiração mudando e eu te digo meu caro que às vezes sentimos através do que escrevemos ou do que lemos e não sentimos nada em outras vezes, não sentimos nada. Mesmo quando parece tão real.” “Isso me conforta até. Pelo menos sei que mesmo que seja por meio de ilusões criadas por mim mesmo ou sopradas a mim por outros, ainda posso sentir alguma coisa.” “É, exatamente.” “Mas poucas ilusões conseguem ser mais reais que um toque.” “Mas será que são ilusões? Eu preciso, talvez, ser mais prática. Em certas ocasiões estamos ali, com pessoas, olhares, toques, que seja cheiros gostos, mas não sentimos nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Escrevendo, para mim, para alguém, com alguém… talvez possa ser possível parece absurdo, mas essa conversa, por exemplo, é tão mais real e sinestéstica que muitas coisas, muitas relações… parece um caminho perigoso. Esse é.” “Não me lembro de ter tido uma conversa assim tão poética creio que na vida.” “É leve. É quase um toque.” “E mais real que muitos.” “É isso. É exatamente isso. Apesar dele não ser um toque, ele é muito mais real do que outros…” “Mas infelizmente creio que seja apenas ilusão ou talvez por sermos pouco práticos somos levados a pensar assim.” “Bom, um poeta falou que a única realidade da vida é a sensação. Ilusão ou não. O que importa? Às vezes nada. Sentir minha pele, a respiração, lábios.” “Sentir é o que importa, porém nada é tão fácil como queremos que seja.” “Nem tão poético. Mas é tão bom permitir-se uma ternura, uma poesia declarada que quebra qualquer cotidiano.” “Por isso digo ser ilusão, pois não sendo ilusão acho que seria muito tolo da minha parte não notar que estava ao menos próximo da felicidade em todas as vezes que senti como real tudo que escrevi, imaginei, elaborei, que suspirei, que arrepiei. Mesmo que por lábios invisíveis aos meus sentidos.” “Verdade, ilusão é. Mas não sei, lábios invisíveis aos meus sentidos, passar a línguas nos próprios lábios pra sentir que existe.” “É sempre melhor passar pelos lábios outros, mesmo quando é somente para nos darmos conta que não existem.” “É. Mas a vontade que eles existam, concretiza-se em qualquer instante. Uma doce ilusão. Deliciosa. Saborosa.” “Acho que vivi pouco. Nunca vi uma se concretizar assim.” “Acho que eu também nunca vi.” “Mas é sempre bom se enganar. Torna as coisas mais fáceis. O difícil é se manter enganado.” “Ah claro. São doses homeopáticas de sensações que dissolvem no ar em breve. Mas ainda assim deixam o corpo mais leve e a respiração mais lenta. Eu sou um tanto sado masoquista mesmo. Eu diria que bastante.” “Como boa escritora. Só não sei se seria mais real ou mais ilusório se tudo que estamos falando agora fosse dito na vida real e não na virtual. Ou mais poético ou menos doce.” “Isso vai ser impossível saber. Acho que não teriam tantas palavras tentando descrever toques. Eles falariam por si só. Mas são só suposições.”

“Nós como todos escritores, creio eu, adoramos o quase. O quase beijo. O quase toque. Porque é perfeito descrever. Porque é perfeito, não tem erro porque não se concretizou. Eis o grande problema: e quando estamos fora de nossos cadernos, contos, histórias?” “O erro do quase é justamente sua maior perfeição: não ter se concretizado. E é nesse paradoxo que reside o sofrimento.” “Justamente. Que absurdo isso. Geralmente é muito difícil se fazer entender.” “Geralmente nada é tão doce ou tão poético. Agradeço por poder fugir ao geralmente, mesmo que por pouco tempo.” “Agradeço por poder fugir do “não sentir”, mesmo que por pouco tempo.” “E isso já é o bastante para eu te alçar a uma condição dada a poucas.Se você me permitir, é lógico.” “Permitir, quem eu sou pra permitir ou não? Não gosto do “permitir”. Mas eu não vou ser tão chata com as palavras.Vamos deixar como “permitir-se”. Permitir a si mesmo.” “Ou melhor, permitir-nos.” “Vamos.” “ E uma delas é meu desejo de transformar tudo isso em texto e poder mostrar a mais alguém que é possível fugir do geralmente, mesmo que por muito pouco tempo.” “Quando eu escrevo pensando em alguém, ficava com medo antes, dela não gostar. Mas saiba que eles gostam” “Eu nunca me preocupei com isso, mesmo quando desconstruo e deturpo tudo.” “Deturpo, eu gosto dessa palavra. Me lembra Lolita. Parece que a última sílaba faz a língua tropeçar no céu da boca. Claro que eu roubei isso do Nabokov. Enfim, eu me permito.” “Então também me permitirei.”

“Ah, o relógio. O tempo é a melhor maneira de acabar com qualquer poesia.” “Logo agora que eu iria suscitar a grande dúvida que paira sobre tudo isso. Acho até ser poético o adiantado da hora e a rotina nos obrigar a terminar assim. Até onde foi você que escreveu e onde a Ana T. assumiu esse texto? Ou será que o texto todo foi redigido pelo cara magro, e entristecido que fuma maços atrás de maços em tudo que eu escrevo? Ou mais incrivelmente ainda, será toda a doçura e poesia apenas nós mesmos?” “Ah, ele tem nome?” “Nunca teve.” “Porque eu realmente aceitaria um cigarro. Não sei até onde eu escrevi, até onde a Ana T. escreveu.” “Nomes personalizam e restringem. A menos que seja algo volúvel, algo transformável, como um simples T. Não sei ser assim tão maleável, por via das dúvidas não tenho nome.” “Claro que tem, você nunca quis ouvir. O nome. Eu diria que faz muito tempo que não escrevo como Ana T. Faz tempo que eu venho escrevendo coisas e assinando como Ana, acho que isso afastou-a de mim. Hoje não. Hoje ela sorriu, ela foi Ana, esse olhar doce que você não enxerga, não porque não quer. Enfim, não teve hora dela, hora minha foi algo ao mesmo tempo um olhar com mais vontade de saber o gosto, o cheiro, um escrever com audácia, mas ao mesmo tempo ser doce. Você me fez doce, menos metida a irônica, cheia de dissimular, menos cética, mais leve… me fez Ana Ternura. Eu Ana. Ana Eu e isso já responde a última pergunta. Nós mesmos. Somos muitos. Sou muitos.”

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5 respostas para De Ana T. e Eu

  1. Samuel disse:

    Cara, patabéns pelo texto, bastante original e bem feito mas ainda assim espontâneo. gostei bastante da originalidade, é um bom estilo pra tu trabalhar.

  2. Aline disse:

    Caralho, que texto foda.

  3. Mara Assef disse:

    É o tipo de texto que eu gosto (:
    digno.

  4. Ana disse:

    que seja doce! e é.
    sinestésico.
    adorei!

  5. Theo disse:

    “Nomes personalizam e restringem. A menos que seja algo volúvel, algo transformável, como um simples T. Não sei ser assim tão maleável, por via das dúvidas não tenho nome.” – cara, essa passagem é. é! me lembrou isso: “Nenhum conceito me expressa, nada do que é designado como meu ser me esgota; são apenas nomes (…)”. Max Stirner

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