Coisas frágeis

– Desculpa o atraso, o trânsito hoje estava infernal. Faz tempo que você chegou?

– Não muito, mas estou com bastante fome e já pedi para a gente. Espero que você esteja a fim de massa.

– Ah sim. Como foi seu dia?

– Comum e o seu?

– Sem atribulações.

– …

– Você se pergunta o porquê de virmos aqui?

– Sim, não aguento mais essa comida. Acho que já pedimos o cardápio inteiro.

– Não é isso que quero dizer, me refiro a termos esses encontros.

– Você não acredita em mim, mas você é boa companhia. Além do que posso beber em uma segunda-feira sem ser taxada de alcoólatra.

– Só você ainda consegue me fazer rir.

– E para você? Qual a razão de virmos aqui?

– É mais barato que terapia e acho que salmão grelhado combina mais comigo do que rivotril.

– Então é isso? Sou sua terapeuta não-remunerada?

– Não. Muito mais do que isso, você é minha constante.

– Como assim?

– Entre todas as trocas de emprego, endereço, estilo de vida… você estava lá. Sempre que precisei de um guia, de um colete salva-vidas, de uma viga de sustentação… você estava lá. Um constante em um mundo de variáveis. Que me permite permanecer constante.

– E você insiste em complicar as coisas. De novo, por que você vem aqui?

– Por que você é boa companhia.

– De novo.

– Por que preciso.

– Por que você acha que eu venho aqui, depois de todos esses anos, desencontros, mudanças de endereço e de estado civil… por que ainda ceder minhas segundas-feiras a você? Não é por que não funcionamos como casal que não gosto de te ver bem, de te fazer bem. Eu venho por que te amo. Então pergunto de novo: por que você vem aqui?

– Porque te amo.

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Doubts and convictions

I’ve never feared losing love. I’ve never truly missed a lost love.
I miss being heard.
I miss being admired.
To sit as a stronghold, protecting her against all threats, a safe house concealing her deepest feelings, healing any wound.
I’ve never wanted to be a lover. I cannot stand the absurdity of such a shallow concept. I was born to be a sorcerer, a magician… I need to mesmerize her, obliterating the image of such a fading world in front of mine, full of wonders. I want to turn her bewildered eyes into a proud look, bright and dreamy. Put an honest smile on her lips, and hope in her heart. Take her hand and walk her through life.
I fear to be a witness of her bliss, to take a walk on part… Above all, I fear to be forgotten. Simply crossing through her life, leaving her as I found. Anyone, anywhere, anytime. Anyhow. I don’t want to be herded among the others, simple shallow lovers. I want to stand up as a mighty shepherd, leading the way, or nothing at all. Because I cannot be her lover without being whole: teacher, healer, magician… And as I do, I will never love anyone until I find my teacher, healer, sorcerer, shepherd… So I wait.
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Terminal

Ele fitava fixamente o rosto da moça do outro lado da estação que mexia nervosamente no celular. Desviava o olhar, que não mais lhe velaria nada. Sabia, estavam atados.

Ela mexia nervosamente no celular, desviando do olhar que lhe confirmaria o que tentava negar. Sabia, estava atado.

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3×4

Dedos inquietos e finos flutuavam por aquelas quatro fotos: a mulher que encontrei, a mulher que amei, a mulher que perdi e a mulher que nunca conheci. Cada segundo gasto ou negado com cada me queimava a retina, torturava a memória.

Queria tê-las ali, qualquer delas, pronto para mostrar que mudei, que continuava o mesmo, que tinha jornado dos céus aos infernos a sua espera. Aonde fora todo aquele chama que ardia em minha própria noção de existência? Suprimido por ciúme, raiva, autocomiseração, esperança… perdido, bipartido, borrado, melindrado em medo, desespero;  encaixotado em esquecimento, descarnado. E ainda viva, ainda que descabida, despropositada querência.

Fora forte para chorar de medo em seu colo. E em seu colo sugou cego, sangrando-a em displicência. Tremeu e temeu por si só, sem vê-la vagar pra longe. E só se viu, por fim.  

A vaga não levou aqueles dedos destros, finos e firmes. Sabiam onde iam, não se deixariam arrastar. Sua segurança e força, extraida dele com tal leveza, a cada afago na nuca, cada naco de alma malamanhada que vomitava sobre ela, lhe guiavam lejano. Não havia sido isso que o atraiu à segunda vista? Já ia-lhe a léguas, longínquas do lugar em que lha guardaria se assim lhe desvelasse anuência. Recomposta, partiu. Viu-o ser arrastado pelas proprias vagas e sorriu, sabendo que não o salvaria dessa vez. Chorou. Perene querência.

                                                         

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Sobre pombos e centros

Impossível conceber um centro de cidade sem uma multidão de pombos. Enquanto caminho, sou acompanhado pelos seus passos vacilantes. Caminhavam ao meu lado sem demonstrar estranheza ou desconforto, sendo eu tão parte da paisagem urbana quanto eles.

Cresci assistindo filmes com a clássica cena em que crianças davam vazão a sua hiperatividade correndo atrás de pombos, que voavam para a segurança ao primeiro sinal de proximidade. Não vejo isso, entretanto, e mesmo duvido se cheguei a ver. Vejo um esquadrão andarilho, que grasna sua mendicância, indiferente a nossa presença, apenas reconhecendo a existência humana pela quantidade de comida em potencial abandonada em nossas ruas. Quando se tornaram tão confiantes? Serão nossas ruas mais seguras para pombos do que para crianças hiperativas?

Em seu paraíso sem teto de alimentos expostos e ameaças ausentes, os pombos mancam esquecidos de suas asas, mas conscientes de sua comodidade. E assim, continuam infestando as ruas dos centros, incautos contra possíveis ornitocidas caminhando ao seu lado.

Hoje encho o centro da cidade com meus passos confiantes. Ao meu redor, meus pares fazem o mesmo; igualmente sem rumo. Adestrados estamos: o êxito aguarda exposto nas ruas e as ameaças inexistem. É só pegar. Claudicantes e de olhos vazios, a multidão vagueia orgulhosamente em uma marcha cega rumo ao pote de ouro no fim do arco-íris.

Não sei se já houve pote de ouro, mas hoje até o arco-íris já se foi, tão indiferente a nós quanto os pombos. O que resta? A mim, não me apetece genocídios, logo apenas correr atrás dos pombos persistentemente, até obrigá-los a alçarem um vôo esquecido em suas esquecidas asas. Ensino-lhes assim uma lição que as gerações passadas omitiram. Ou aprendo uma.

Espero sob o Sol quente na rua 11 de agosto. Do outro lado do asfalto, o letreiro da padaria crava: D´Agosto. O trocadilho, simples e funcional, impressiona-me pela completude. Será muito esperar isonomia do Destino?

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A mulher de Branco

No mesmo horário de sempre a mulher de branco subiu no ônibus. A meses eu a observava. A tez de sua pele era de uma alvura que apontava para o albinismo, só desmentido pelos seus olhos castanhos e pelas ralas sobrancelhas escuras. A tez de sua pele só era comparável em alvura a suas roupas: blusa branca, calça branca, tênis branco e meias brancas. Em dias frios um pullover igualmente branco a protegia do tempo. Brancas também eras hastes de seus óculos, e a liga de seus cabelos.

De segunda a sexta, pontualmente as 13:50 ela subia no ônibus, sempre no mesmo ponto. Exalando uma pureza etérea, cumprimentava o motorista com a vivacidade de quem reencontra um velho amigo perdido, deixando o dia do homem melhor. De sorriso franco e aberto, exibindo os dentes impecavelmente brancos, pagava à trocadora, que a respondia com simpatia incomum a esta mesmo quando a moça de branco não possuia todo o dinheiro necessário.

Creio que a todos era óbvia a colocação dessa moça em algum cargo relacionado a saúde. Enfermeira, recepcionista de um hospital? Posto de saúde? Dentista, cirurgiã? Independentemente, não conseguíamos ficar indiferentes a sua presença, e tal como uma lufada de ar fresco na rotina dos presentes naquele ônibus, diariamente sua entrada refrescava-nos e alguns até deixavam escapar um sorriso discreto, não contido.

Estando o ônibus meio vazio no horário, o assento ao meu lado sempre esteva vago, tal como vários outros. Ela sempre buscava um local onde pudesse ficar só, talvez por pura etiqueta. Mas pelos breves segundos  que levava para que  atravessasse a catraca e se dirigisse a um lugar, meu coração palpitava. Imagino quantos outros também não prendiam a respiração, ansiando por ter a moça de branco perto de si.

De uma beleza comum, com um corpo sempre coberto demais para fornecer qualquer informação para uma imaginação mais lasciva, não creio ser justo atribuir todo esse encanto apenas à brancura de suas vestimentas… Havia algo a mais, tinha que haver. Será que por trás daqueles óculos se escondia um olhar sedutor de femme fatale? Será que por baixo daquelas camadas de alvo tecido se camuflava uma roupa de couro? Seria todo aquele branco o seu ponto de equilíbrio? Ou sua armadilha?

Até o dia que notei que a moça de branco vestia uma camisa verde claro. Sem dúvida não deveria ter me espantado, pois o novo traje casava perfeitamente com o estereótipo hospitalar que havia pintado anteriormente. Mas uma dúvida passou a me consumir: Estaria ela vestida de branco por todos esses meses, ou minha mente enganava-me?  Seria esta moça ao menos notada pelos meus companheiros de viagem? A tanto tempo enojado como estava, teria eu personificado minhas últimas lascas de esperança e pureza nessa mulher que fortuitamente cruzara meu caminho?

Dava-me o benefício da dúvida. Nunca puxei assunto, nunca tentei colocar um nome naquele rosto. Resumia-me a sentar calado e aproveitar a brisa que a acompanhava, contendo um sorriso por entre meus não tão brancos dentes.

No mesmo horário de sempre a mulher de branco subiu no ônibus. A meses eu a observava. A tez de sua pele era de uma alvura que apontava para o albinismo, só desmentido pelos seus olhos castanhos e pelas ralas sobrancelhas escuras. A tez de sua pele só era comparável em alvura a suas roupas: brancas, ainda que verdes.

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Era

O ronco enchia a sala, ressoando pelas paredes que tentavam contê-lo. Amplificavam os soluços abafados pelo travesseiro no quarto. As lágrimas esquentavam a face outra, encharcavam lençóis. O sono ébrio do marido fazia-lhe suja. Enlameava sua alma e oprimia seu peito. Soluçava cada vez com mais dificuldade enquanto tentava manter-se una. Nada. Dentro de si, ao menos.

Mais cedo, as lágrimas lavaram o seu amor próprio. Ouviu tudo sem nada dizer, cada gota dissolvendo aquela cena, frias, resignadas. Caíam quase que por obrigação. Chorar não era vergonha, chorar não era privilégio. Era nada, era o que tinha que ser.

Ela sabia onde se metera. Ouvira sua mãe, suas amigas, seus confidentes. Mas a razão fugia-lhe sempre quando se tratava dele. Ele era o que era, ela seria o que tivesse que ser. Mudaria por ele, que não mudaria. Não por amor. Não por ela.

Abraçava agora seus joelhos mordendo debilmente os dedos, fitando a aliança que tanto significava… Tampava sus ouvidos com os joelhos, em vão.  Com os travesseiros, com seu conformismo. Mas nem sua subserviência tirava a dor que lhe perpassava a cada ressonar.

Ele dormia o sofrimento dela. Ele roncava suas frustrações, e em vigília ela sentia sua indiferença. Sem dó, sem respeito, sem importância. Queria só não sentir a tristeza que atravessava o corpo e brotava aos olhos. Quente como o corpo dele. Quente como seus beijos e seus abraços.

Queria-o junto a si. Colado, estremecendo junto, estremecendo em compasso. Não bastava escutar sua presença, precisava senti-la sob os cabelos da nuca. A respiração brigando para sair do seu peito, fazendo-se ouvir pela casa… Não bastava, não era real o bastante. Tinha que ter toque, era isso que faltava. O resfolego abafava o choro, era isso o problema. Ela que tinha que se fazer ouvir, depois de tantos anos. Ela que já tinha mudado tanto, esquecia-se para que o fazia.

Dormindo pesado, alheio a todo o embate que se passava, ele estava em paz. E para que inquietar o coitado? Que fazia de tudo, para amá-la do jeito dele, ela que tinha mudado tanto nesse tempo todo. Não valia a passada. A gota de suor na testa dele, a respiração ruidosa, o cansaço estampado no descanso… Era ela afinal. Para que fazer tudo aquilo? Era justo com ele? Justo com eles? Trocou de joelho e seguiu sua vigília, decidida a se embalar na levada daquela respiração truculenta. Até onde fosse. Até onde tivesse que ir.

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Fortuna

Sua risada escandalosa não demonstrava classe algum. Seus gestos, cada vez mais largos e espalhafatosos, incomodavam-no profundamente. Nada disso, porém, era novo. Conhecia cada idiossincrasia dela, cada meneio daquele corpo, cada significado oculto naqueles olhos. Por isso, mesmo apenas observando, antevia cada cena que ia se descortinando naquele recinto.

Os homens de conversa fácil e sorriso mole interpretavam o seu papel naquele espetáculo. Expandiam a teia e armavam arapucas físicas e semânticas, nas quais ela se enredava. Esparramava-se entre eles, afoitamente. Despertava-lhe asco. Sim, já havia presenciado tal comportamento, quando ele mesmo era um homem de conversa mole e sorriso fácil. Porém quanto mais se enveredava pelas reentrâncias do corpo e da mente dela, mais dependente de seus caprichos se tornava. E se tornara isso, um observador destilando vontade e desprezo, preso a um masoquismo inerte.

Conhecedor que era, compreendia tanto quanto os homens que a cercavam a que busca ela se lançara. Uma trepada ébria a aguardava no fim dessa noite, e ansiava partilhar seu corpo com um desconhecido. Ele olhava tudo com nojo e desespero contido, atormentado por saber que não preenchia os requisitos exigidos por ela. Faltava-lhe o desconhecimento. Talvez por isso bebesse com tanta avidez, na inconsciente esperança da ebriedade distorcer aquela cena a algo aprazível.

Os homens moles de sorriso fácil, ignorantes do que se passava na mesa ao lado, pagaram-na a conta e a conduziram para destino ignoto.  Por fim, tendo extraído todo o sofrimento que a noite lhe proporcionara, deu-se por satisfeito e pediu a saidera.

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Sê-lo

Tua imagem se confunde com frases desconexas em sueco. Em sueco tu sussuras grosserias em meu ouvido. Cada toque teu é um movimento de xadrez, tu antevendo cada jogada de meu corpo reativo. Mero fantoche, caio em teu plano, indefeso. Fantoche da tua Vontade e do teu Desejo.

Em sueco me ordenas coisas desconexas. Não entendo teu idioma, leio teu corpo. Teu corpo é o tabuleiro, ansiando minha próxima jogada. As peças somos todos os nós, nos movendo em suja sincronia.

Tua boca se cala, o sueco se perde na trilha sonora e nos créditos. Cessa ante nosso resfolego, cessa ante nossa pulsação. E perdidos que estamos, fantoches de nossas urgências, enfim te compreendo pela única língua comum,  a tua. E real enquanto onírico, a trilha cessa, deixando apenas o fundo negro.

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De Ana T. e Eu

Mesmo sem vê-la, imaginava-a faceira, sorrindo de canto de boca, não sei se de escárnio, incredulidade ou contentamento. Escrevíamos freneticamente, meio em transe. Não sabia se falava com ela, ou com sua Ana T. Em vão, muitos tentaram descobrir de que T. se tratava. Transa, Tesão? Algo sujo, talvez Trepa? Ana Tola? Para mim era claro, Ana Terna. Depois de me deixar dar uma breve espiada em seu âmago, ela disse:

“Mas enfim, viva os desabafos com os desconhecidos. Eu falo demais,desculpe.” “Desculpas não aceitas. Ninguém deve pedir desculpas por isso.” “Obrigada. É. Não hoje. Nem usar o modo imperativo. Não hoje. Mas me diga, eu escrevendo pareço com a que você conheceu? A que você viu e falou?” “Te devolvo a pergunta, mesmo sabendo a covardia que é fazer isso.” “Não. Não parece. Não é bem isso.” ”Como assim?” “Se eu conhecesse você pela internet, talvez achasse que você é uma pessoa mais séria. E você pareceu ser tão… ora… doce? Acho que por aqui não falaria que você é uma pessoa que gosta de abraçar, ou mais ligada aos toques..mas pelo pouco que eu lembro, acho que você é assim. Ora, mas tudo o que eu falei está ligado muito com suposições, ser, parecer… ai fica tão difícil… cheio de achares.” “Mas no fundo tudo é achismo, por mais clichê que seja. Não sei se me descreveria como uma pessoa de tato e toque, pelo menos o meu eu sóbrio.” “Eu não descreveria você assim, acho que você por aqui parece gostar menos disso do que na “vida real”. Mas pra variar eu estou falando muito, não sei, eu lembro pouco. Absurdo isso “vida real”, “vida virtual”é vida.” “Para nós.” “Acho triste.” “Quero nunca chegar a esse estágio.” “Nem eu.” “Mas eu gosto de toques. Não tanto como de sons.” “Faz sentido” “Acho que por ter sentido você, não me dei por satisfeito somente com sons, e necessitei de toques.” “E eu fugi deles.” “Eu notei.”

“Esse diálogo. Está tão bonito, se você permitir, um dia vai virar um conto. Sou bastante viciada em escritos. Ai meu deus, que metalinguagem absurda daqui a pouco já tem um conto. Eu gosto de tato, eu sou totalmente ligada nisso. Pele. Textura.” “Toque.” “Gosto.” “Talvez eu tenha me enganado e Ana T. seja Ana Toque e não Ana Terna.” “Ou textura.” “Será?” “Vai saber, né.” “Textura é inação. Algo que é. Sem vontade ou algo que o valha por trás. Toque não. Toque é atitude. É desejo, é Vontade.” “Mas textura, textura não se fala. A pele não gosta que saiam por ai falando assim, jogando ao ar a palavra: Textura. A boca tem que sentir, por mais clichê que seja. Lábio descobrindo a textura da pele.” “Toda descrição é vã. Acho que por isso não se deve falar de textura.” “Nem de toques, desejos, vontade?” “É quase herege você excitar imagens e sons, atiçar-se olhos, ouvidos com textura, quando o único que realmente pode ser satisfeito por isso não está disponível: o toque.” “O toque como ação. Mas nós nos deliciamos com isso, os poetas, escritores… que seja, qualquer que escreva, qualquer cena escrita é capaz de arrepiar.” “Todo escritor antes de mais nada é um sado masoquista. De se excitar e se martirizar pelo que cria e escreve. Principalmente quando não pode alcançar.” “Ou então porque já virou lembrança.” “Ainda mais quando seja algo tão forte como um toque.” “Como pode não? As palavras. Palavras, não são só palavras. Sentimos o gosto a respiração mudando e eu te digo meu caro que às vezes sentimos através do que escrevemos ou do que lemos e não sentimos nada em outras vezes, não sentimos nada. Mesmo quando parece tão real.” “Isso me conforta até. Pelo menos sei que mesmo que seja por meio de ilusões criadas por mim mesmo ou sopradas a mim por outros, ainda posso sentir alguma coisa.” “É, exatamente.” “Mas poucas ilusões conseguem ser mais reais que um toque.” “Mas será que são ilusões? Eu preciso, talvez, ser mais prática. Em certas ocasiões estamos ali, com pessoas, olhares, toques, que seja cheiros gostos, mas não sentimos nada. Nada. Nada. Nada. Nada. Escrevendo, para mim, para alguém, com alguém… talvez possa ser possível parece absurdo, mas essa conversa, por exemplo, é tão mais real e sinestéstica que muitas coisas, muitas relações… parece um caminho perigoso. Esse é.” “Não me lembro de ter tido uma conversa assim tão poética creio que na vida.” “É leve. É quase um toque.” “E mais real que muitos.” “É isso. É exatamente isso. Apesar dele não ser um toque, ele é muito mais real do que outros…” “Mas infelizmente creio que seja apenas ilusão ou talvez por sermos pouco práticos somos levados a pensar assim.” “Bom, um poeta falou que a única realidade da vida é a sensação. Ilusão ou não. O que importa? Às vezes nada. Sentir minha pele, a respiração, lábios.” “Sentir é o que importa, porém nada é tão fácil como queremos que seja.” “Nem tão poético. Mas é tão bom permitir-se uma ternura, uma poesia declarada que quebra qualquer cotidiano.” “Por isso digo ser ilusão, pois não sendo ilusão acho que seria muito tolo da minha parte não notar que estava ao menos próximo da felicidade em todas as vezes que senti como real tudo que escrevi, imaginei, elaborei, que suspirei, que arrepiei. Mesmo que por lábios invisíveis aos meus sentidos.” “Verdade, ilusão é. Mas não sei, lábios invisíveis aos meus sentidos, passar a línguas nos próprios lábios pra sentir que existe.” “É sempre melhor passar pelos lábios outros, mesmo quando é somente para nos darmos conta que não existem.” “É. Mas a vontade que eles existam, concretiza-se em qualquer instante. Uma doce ilusão. Deliciosa. Saborosa.” “Acho que vivi pouco. Nunca vi uma se concretizar assim.” “Acho que eu também nunca vi.” “Mas é sempre bom se enganar. Torna as coisas mais fáceis. O difícil é se manter enganado.” “Ah claro. São doses homeopáticas de sensações que dissolvem no ar em breve. Mas ainda assim deixam o corpo mais leve e a respiração mais lenta. Eu sou um tanto sado masoquista mesmo. Eu diria que bastante.” “Como boa escritora. Só não sei se seria mais real ou mais ilusório se tudo que estamos falando agora fosse dito na vida real e não na virtual. Ou mais poético ou menos doce.” “Isso vai ser impossível saber. Acho que não teriam tantas palavras tentando descrever toques. Eles falariam por si só. Mas são só suposições.”

“Nós como todos escritores, creio eu, adoramos o quase. O quase beijo. O quase toque. Porque é perfeito descrever. Porque é perfeito, não tem erro porque não se concretizou. Eis o grande problema: e quando estamos fora de nossos cadernos, contos, histórias?” “O erro do quase é justamente sua maior perfeição: não ter se concretizado. E é nesse paradoxo que reside o sofrimento.” “Justamente. Que absurdo isso. Geralmente é muito difícil se fazer entender.” “Geralmente nada é tão doce ou tão poético. Agradeço por poder fugir ao geralmente, mesmo que por pouco tempo.” “Agradeço por poder fugir do “não sentir”, mesmo que por pouco tempo.” “E isso já é o bastante para eu te alçar a uma condição dada a poucas.Se você me permitir, é lógico.” “Permitir, quem eu sou pra permitir ou não? Não gosto do “permitir”. Mas eu não vou ser tão chata com as palavras.Vamos deixar como “permitir-se”. Permitir a si mesmo.” “Ou melhor, permitir-nos.” “Vamos.” “ E uma delas é meu desejo de transformar tudo isso em texto e poder mostrar a mais alguém que é possível fugir do geralmente, mesmo que por muito pouco tempo.” “Quando eu escrevo pensando em alguém, ficava com medo antes, dela não gostar. Mas saiba que eles gostam” “Eu nunca me preocupei com isso, mesmo quando desconstruo e deturpo tudo.” “Deturpo, eu gosto dessa palavra. Me lembra Lolita. Parece que a última sílaba faz a língua tropeçar no céu da boca. Claro que eu roubei isso do Nabokov. Enfim, eu me permito.” “Então também me permitirei.”

“Ah, o relógio. O tempo é a melhor maneira de acabar com qualquer poesia.” “Logo agora que eu iria suscitar a grande dúvida que paira sobre tudo isso. Acho até ser poético o adiantado da hora e a rotina nos obrigar a terminar assim. Até onde foi você que escreveu e onde a Ana T. assumiu esse texto? Ou será que o texto todo foi redigido pelo cara magro, e entristecido que fuma maços atrás de maços em tudo que eu escrevo? Ou mais incrivelmente ainda, será toda a doçura e poesia apenas nós mesmos?” “Ah, ele tem nome?” “Nunca teve.” “Porque eu realmente aceitaria um cigarro. Não sei até onde eu escrevi, até onde a Ana T. escreveu.” “Nomes personalizam e restringem. A menos que seja algo volúvel, algo transformável, como um simples T. Não sei ser assim tão maleável, por via das dúvidas não tenho nome.” “Claro que tem, você nunca quis ouvir. O nome. Eu diria que faz muito tempo que não escrevo como Ana T. Faz tempo que eu venho escrevendo coisas e assinando como Ana, acho que isso afastou-a de mim. Hoje não. Hoje ela sorriu, ela foi Ana, esse olhar doce que você não enxerga, não porque não quer. Enfim, não teve hora dela, hora minha foi algo ao mesmo tempo um olhar com mais vontade de saber o gosto, o cheiro, um escrever com audácia, mas ao mesmo tempo ser doce. Você me fez doce, menos metida a irônica, cheia de dissimular, menos cética, mais leve… me fez Ana Ternura. Eu Ana. Ana Eu e isso já responde a última pergunta. Nós mesmos. Somos muitos. Sou muitos.”

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